terça-feira, 3 de junho de 2014

Precisamos nos drogar para não sucumbir?

São infinitas as formas com que o ser humano conseguiu, através de uma paixão, resistir à dureza, à violência e à monotonia da existência.
Há um aspecto das drogas do qual pouco se fala, porque o ser humano ou se droga de algum modo ou enlouquece. A falácia radica em que hoje chamamos de droga tudo que pode ser uma âncora para poder sobreviver sem perder o gosto pela existência.
Chamamos de droga tudo que nos oferece prazer, do sexo à comida e não só os estupefacientes químicos. Na verdade, mais que de drogas, trata-se de “paixões”, como se apelidavam antes que o comércio milionário e violento das drogas químicas se apropriasse da palavra.
Desde os tempos mais antigos, o ser humano se drogou em busca de uma alteração da consciência que lhe produzisse prazer e alegria e lhe permitisse esquecer as agruras da vida. Fez isso até ritual e religiosamente, usando as plantas e tudo que alterava os sentidos.
Os psicólogos alertam que o ser humano – assim como provavelmente muitos dos animais – enlouqueceria se não tivesse paixão por algo. Podem ser grandes ou pequenas paixões, mas necessitamos de algo que nos excite, ofereça-nos ilusão a cada dia que amanhece e a cada noite em que nos rendemos ao sono.
São infinitas as formas com que o ser humano, através de uma paixão que lhe ofereça algum tipo de satisfação, conseguiu resistir à dureza da existência, a sua monotonia ou a sua violência.
Busca-se essa paixão ou essa droga por todos os meandros de nossa vida. Pode ser o poder como afrodisíaco, o sexo, o amor, a leitura, a arte ou a paixão pela natureza. E até a religião.
Pode ser que haja paixões que consideramos mais nobres que outras, mas no final são todas elas um medicamento mais ou menos ilustre que nos impede de enlouquecer.
Há quem se refugie na fruição das drogas químicas, ou do álcool. Uma grande paixão de amor é também uma grande droga até o ponto em que se diz, sobre as pessoas que a vivem, que parecem enlouquecidas.
Atribui-se uma periculosidade especial às drogas, às quais se diferencia das paixões, porque elas podem levar à morte e alterar nossa capacidade cerebral. Entretanto, igualmente perigosa e letal pode ser uma grande paixão de amor ou sexual.
Quantos se suicidaram no mundo por amor, ao não ser correspondidos ou não conseguir superar essa paixão? Ou mataram arrastados por ela? O jogo e o poder são outras paixões que podem levar ao suicídio. Mas o que produziria mais morte no mundo seria a falta de paixões. Sem elas, o ser humano ou enlouqueceria ou se embruteceria.
Pode ser uma droga também a paixão pelo exercício físico ou até pela religião, qualificada por Marx de “ópio do povo”, mas o certo é que o fato religioso pode chegar a ser uma das drogas mais fortes capazes de alterar as consciências. Basta recordar os grandes místicos, seus êxtases e suas paixões por imitar o Crucificado.
Já houve místicas que passaram até meses sem comer, alimentando-se da Eucaristia, e até sem dormir E os santos com chagas, como Francisco de Assis ou, em nosso tempo, o Padre Pio? Hoje a ciência sabe que essas chagas são produzidas por esses místicos com a força de sua paixão pela identificação com Cristo. Existe maior droga? E os mártires? Alguns médicos agnósticos me confessaram que morrem menos desesperados aqueles que têm nesse momento a âncora de alguma fé religiosa.
O ser humano, apesar de toda sua arrogância externa, nasce frágil e carrega essa fragilidade física e psíquica por toda a vida. Ninguém nasce destinado à felicidade, que é paradoxalmente uma conquista dolorosa. Nenhum bebê nasce rindo, nasce chorando talvez de medo e de estupor.
A vida por si mesma nem sempre basta para uma realização total das ânsias de felicidade e de conquista do Homo sapiens. O homem, para melhor realizar-se e melhor lutar contra suas frustrações, necessitará de alguma paixão se não quiser sucumbir ou render-se à mediocridade.
Poucas drogas são mais fortes na vida, por exemplo, que uma amizade verdadeira, sincera, forte, inquebrável. É o melhor antídoto contra a solidão.
Existem as drogas consideradas positivas e as negativas, como existem os verdadeiros e falsos amores. Entre as negativas, poucas são tão fortes e tão letais, em nossa existência, como a solidão forçada, a falta de amor ou o abandono dos que amávamos.
Até no ser humano que se sente realizado segue viva em seu interior, como uma ameaça latente, essa fragilidade com que todos nascemos.
Entre os satisfeitos ou falsamente satisfeitos com sua fatia de poder e autossatisfação, pulsa, filho dessa fragilidade congênita, o medo de perder seu paraíso
Sem algo que o sacuda da rotina e da mediocridade, o ser humano, do mais culto ao mais analfabeto, cairia na infelicidade. Às vezes, entretanto, uma pequena paixão ou alegria, como o perfume do café ao despertar; o sorriso de um filho ou um neto, a ajuda generosa e desprendida a alguém que chega até você em busca de ajuda e de consolo, pode constituir a melhor e mais poderosa droga para poder continuar apreciando a vida.
Podemos até alterar nossa consciência, por exemplo, com a fruição de uma música, com a contemplação de uma pintura que nos empolga e até com o esplendor de um arco-íris, como o que esta manhã, depois de uma chuva outonal, surgiu como um deus, sobre o Atlântico que tenho diante de meus olhos ao escrever.
Pode alguém drogar-se com a beleza ou com uma leitura o apaixone? A melhor droga seria na verdade a vida em si, mas às vezes, para tantos, é tão cruel, que precisam temperá-la e adoçá-la com alguma paixão. Quando até isso falta, a noite se torna duplamente escura.
Por que estão aumentando no mundo a depressão e o estresse?
Possivelmente por falta dessas pequenas ou grande paixões que são o melhor remédio para desfrutar a vida e fugir de sua crueldade e frustração.
Sem alguma paixão que nos sacuda de dentro, até um amanhecer acabará ferindo nossos olhos acostumados à escuridão das noites vazias e até o silêncio nos fará um ruído insuportável.
Embalados, em vez disso, por alguma paixão, tudo recupera o frescor e a beleza do primeiro dia da criação.

*Fonte: http://brasil.elpais.com/brasil/2014/06/01/opinion/1401657357_559577.html


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